Claro que estamos todas e todos, favoráveis à este tema, ansiosas e ansiosos para sabermos se, na prática, os discursos irão se manter. Afinal, são anos e anos imersos numa cultura que atinge grande parte do mundo: patriarcal, machista e que torna secundária a atuação feminina.
Talvez, o uso dessas palavras, de pronto incomode determinados indivíduos, que com menos de 1 minuto de leitura e nenhum segundo de reflexão, irão dizer: “mimimi”. É possível que muitos não compreendam o abismo social que existe com a diferenciação de gênero, mas outros estão perfeitamente confortáveis com ele. Esta fala se destina à ambos, e também para aqueles que, ideologicamente, possam concordar comigo.
Minha vida no tradicionalismo iniciou em função da minha grande paixão, a dança. Inicialmente me fiz integrante de invernada aos 12 anos e, com 14, descobriram-me Prenda, e tornei-me precocemente Prenda Adulta da minha entidade. Os anos na minha cidade natal se passaram entre Prendados e cargos de Patronagem, funções que, mesmo nova, sei que desempenhei com a máxima competência que me cabia.
Mas foi em Santa Maria, onde fui morar aos 20 anos e iniciei o curso de História na UFSM, que tive maturidade e discernimento suficiente para começar a entender e criticar determinadas situações, que separam homens e mulheres em uma imaginária escala de capacidades. Pela 13ª RT, fui 1ª Prenda, Diretora do Departamento Jovem, Integrante do Departamento de Protocolo e Diretora Cultural. Pela minha entidade, 1ª Prenda, Diretora Artística, Diretora Cultural, Diretora do Departamento de Comunicação e – Patroa, com 27 anos. E foi aí que as coisas começaram a mudar.
Enquanto Prenda, eu já sentia desconfortos mas ainda sem maturidade suficiente pra saber o quanto isso tava errado. “Não fale sobre tal assunto”, “apenas cumprimente as pessoas”, “evite dar sua opinião”, “eles vão te ferrar no Estadual se tu falar demais”, “não discorde”.
Num processo de autoconhecimento e crescimento, eu tinha dúvidas se era eu quem estava forçando a barra ou se as coisas não deveriam mesmo ser assim. Conheço Prendas incríveis e conheço Prendas que apenas dizem o que as mandam dizer. Algumas pois preferem este posto, tudo bem. Outras também estão no mesmo processo de crescimento e compreensão que passei. Tudo bem também. O problema são aquelas que são obrigadas, mesmo a contragosto, a apenas repetirem aquilo que as pessoas querem escutar – e ainda não estão prontas para rasgarem com esse personagem secundário e assumirem aquilo que são.
Mas ainda assim, as Prendas, em geral, são muito bem recebidas, enquanto moças bem apresentadas que estão representando suas entidades (pouco espaço de fala lhes será dado de qualquer forma. “Convide para seu evento”, “fale sobre o CTG”).
As Patroas, em suas figuras de liderança: não. Não estou dizendo que me virassem a cara, que me negassem um aperto de mão (afinal cumprimentos e abraços falsos existem desde a Idade Antiga). Mas eu incomodava. Mesmo silente, minha presença ali era, inúmeras vezes, aborrecedora. Quando atuava nos debates então… Desgosto.
Comecemos pelos títulos dos eventos, como “Encontro de Patrões”. A mensagem é clara: não é pra ti, mulher, estar ali. Aquele é o espaço dos “machos bombachudos” falarem de papo de homem. Até mesmo pois, durante estes eventos, geralmente as Prendas e Diretoras Culturais são convidadas à se reunirem em um outro ambiente para debaterem os assuntos de mulher (ou de “jovens”, como gostam muito de dizer).
Enquanto todos deveriam estar inseridos no ambiente central do Encontro, não: vamos separar os HOMENS das “crianças”. O mesmo acontece nos Congressos, por exemplo. Prendas e Peões (“jovens”) são retirados da Plenária para atividades paralelas, quando deveriam estar aprendendo nos espaços de debate e (espera-se) construção coletiva .
Quando Patroa, inúmeras vezes que me manifestei nos Encontros de PatrÕES e, por exemplo, ouvia rumores do tipo “quem é essa guria?”, ou “lá vem essa daí enchendo o saco”. Nunca me intimidei até mesmo pois sempre recebi uns taxativos como “ela é polêmica”. Por mim, ótimo. Sinal que não fui acomodada nem conivente com a reprodução desse modelo de sociedade de podia ter ficado morto no século passado.
Questionei inúmeras vezes: quando que as pautas dos demais departamentos serão tratadas na plenária principal junto aos PatrÕES? Iremos sempre entender que o Departamento Campeiro (o qual fico feliz por hoje ver várias mulheres se engajando e buscando espaço, ainda que estejam distantes das resoluções) e suas pautas são as “principais” e todas as demais são secundárias? Será que o fato de envolver a maioria masculina não interfere MESMO nesta forma de lidarmos com as questões do Movimento? (Reflita!)
Dentro de minha entidade, os líderes do Departamento Campeiro (da época) não se conformavam com minha figura. Nas assembleias, faziam questão de tentar me diminuir. Quando eu discordava de um deles, ouvia em alto e bom tom: “também né, mulher aí, não dá pra esperar muita coisa”, ou “não dá pra gente tratar disso só com O FulanO?” Não querido, não dá.
Porém, com uma baita equipe composta de homens e mulheres, nossa Gestão até hoje foi a única que conseguiu alcançar os 200 pontos na Lista de Destaques. E digo isso apenas para lhes dar um quantitativo, pois sei que isso não representa a grandeza de uma entidade tradicionalista.
O respeito, por sua vez, precisei conquistar, pois as mulheres passam por isso o tempo todo: ocupamos um posto por competência mas precisamos provar que ela existe O TEMPO TODO. E deixo um registro importante: eu nunca me masculinizei para que isso acontecesse. Não falei mais grosso, não tirei a flor do meu cabelo e não agi como seu eu fosse um guri. Eu fiz a minha parte, com naturalidade e disposição. Ah, e claro, humildade pra aprender o que eu não sabia. Até mesmo pois tem coisa que “homem já nasce sabendo, pra essa aí tem que ensinar…”. Que bom, se todos tivéssemos disposição pra aprender aquilo que outros nascem sabendo!
Mas falando em guri… Percebem que desde pequenos diferenciam os meninos e as meninas? Nós reproduzimos valores toscos e afrontamos até mesmo nossas crianças. “Prenda não pode dar carão” e atire a primeira sapatilha a prenda que nunca escutou isso! Eu pergunto: PORQUÊ? Se eu não quero dançar com x pessoa, eu apenas NÃO DANÇO!
Além disso, Prenda não pode tirar pra dançar. E eu pergunto de novo… PORQUÊ? Se somos um núcleo cultural que busca manter valores de uma sociedade anterior, ótimo, mas isso NÃO-SÃO-VALORES. São o reflexo de uma sociedade machista e patriarcal que me ensinou a esperar sentada (e comportada, por gentileza) que algum homem se interessasse por mim, e caso isso acontecesse, eu não podia perder essa oportunidade! Com licença, senhores… Com licença!
A construção da escrita da história se fez assim, feita, claro, por homens. Quantos livros conhecemos sobre a CONTRIBUIÇÃO da mulher/do negro/do imigrante/do índio? E quanto temos sobre a CONTRIBUIÇÃO do homem? Questiono: se eu estou contribuindo, quem fez por mim? Pois bem, ninguém fez. Eu faço, vocês fazem, nós fazemos!
A história é múltipla e dinâmica, e não podemos mais percorrê-la escolhendo algumas personagens femininas para representar todas as demais. Temos que parar de achar que Anita Garibaldi foi a única mulher que se destacou na história do RS. “Ah, mas então se tinham tantas, porque que ela se destacou e as outras não?”. Digo: provavelmente pois mudou de nome e foi apadrinhada pelo sobrenome de um general. “Ué, mas então porque não falamos da Caetana, esposa do grande Bento Gonçalves?” Digo; provavelmente pois também teríamos que falar da sua leva de amantes e dos registros de filhos que ele tem fora do casamento. Sabem como são esses “cidadãos de bem…”.
A História é toda a ação humana ao longo do tempo e do espaço, sendo assim, eu faço a história do presente. E tu também faz. Basta ser humano. Não importa se tu és branco/a, negro/a, índio/a, gay, bi, trans, rico ou pobre (e encaixe quantas definições tu quiseres aqui). Não há coadjuvantes na história.
Por fim… Gurias, meninas, moças, mulheres: falem, dancem, pensem, libertem-se. Nós somos iguais. Não somos a “jóia rara” pois nem sempre somos bem tratadas. Se o fato de que todo ser humano nasce de uma mulher fosse suficiente para sermos respeitadas, a humanidade teria tido outros rumos desde a pré-história.
É hora, primordial, de abrirmos mão da nossa hipocrisia que afirma que a sociedade é igualitária, pois ela não é.
Nosso Movimento, lamento dizer, não está a frente disso: ele também não é. As minorias não o integram plenamente e, quando o fazem, seu espaço de fala é limitado e intimidado. O bom e velho “é importante que você disse isso,parabéns! Mas não é bem assim”. Ainda somos, em maioria, um movimento elitista e de lideranças masculinas e que não estão interessadas na prática do feminismo (ou seja, igualdade de gênero, caso alguém ainda tenha dúvidas quanto ao termo que, por inúmeras vezes, a própria mídia distorce).
Mulheres feministas intimidam, inúmeras vezes, por sua capacidade de agir e ocupar espaços tradicionalmente masculinos. “Olha, ela foi na plenária falar…” Porque isso nos espanta? E vale lembrar, ainda sobre feminismo… Esse papo de “não depila o sovaco”, gente, por favor, bora evoluir que a gente consegue!
E temos muito a evoluir, enquanto Movimento e enquanto sociedade: rever nosso entendimento de mundo, de cultura e de valor.
Apenas não esperem pelo nosso silêncio.
Nós. VOZ. Elas.
SOBRE A AUTORA:
Tainá Severo Valenzuela
Mestre em Patrimônio Cultural – UFSM
Historiadora e Licenciada em História – UFSM
Acadêmica de Publicidade e Propaganda – UFSM
Diretora Cultural do DTG Noel Guarany – UFSM