O costume de adornar os arreios do gaúcho com metais preciosos como a prata e o ouro, é um assunto que envolve intrincadas sequências históricas, envolvendo diversas culturas.
Na América, citamos as andinas, mapuches, ranqueles e finalmente a gaúcha. Contudo, ainda temos de observar a longa ascendência européia que se confunde com a própria história da equitação.
Os arreios gaúchos surgiram da necessidade. Eram peças fortes, para aguentar a dura lide, primeiro das vacarias e depois das estâncias. Tinham que aguentar chuvas e os tempos de inverno assim como o sol do verão. No entanto, as milenares influências militares, a riqueza de detalhes e mesmo de força e ostentação exerceram seu papel aqui no sul da América. Vercingetorix, o lendário general gaulês se apresentou perante Cesar, para se render formalmente montado num cavalo ricamente enjaezado. Quase dois mil anos depois, a foto mais reproduzida do caudilho uruguaio Aparício Saravia o mostra justamente a cavalo, com seus famosos arreios de prata.
Os arreios se constituíram, no seu tempo, em todo o luxo e mesmo o pensamento de um paisano, que só era compartilhado com sua tropilha. Os trabalhos em couro, chifre, prata e ouro, em menor quantidade, evoluíram de simples e rústicos adornos a verdadeiras obras de arte, em que esses artesãos se dedicavam por meses para produzir uma única peça. Luís Felipe Gastão d’Orleans, o Conde D’Eu, quando da sua passagem pelo Sul rumo aos campos paraguaios, registrou no seu diário que:
“Em Pelotas florescem em todo o seu esplendor as indústrias que alimentam o verdadeiro luxo rio-grandense, o dos arreios. Estas indústrias, como se sabe, são duas: a dos couros lavrados, cinzelados, coloridos, bordados de mil maneiras, e a das peças de prata, não menos artisticamente trabalhadas […] na Rua de S. Miguel vê-se uma fila continua de lojas, onde estão expostos estribos, esporas enormes, peitorais e freios, tudo de prata, ostentando esplendor deslumbrante, que se iguala, não digo já o da Rua do Ouro, de Lisboa, mas até o da “Strada degli Orefici”, de Gênova.”
Na farta iconografia platina, assim como nos inúmeros relatos de viajantes de diferentes nacionalidades, podemos confirmar, digamos assim, esse gosto nacional por adornar o ídolo, o cavalo com os melhores aperos que se podia pagar. E nos valendo do talvez mais famoso desses viajantes, Saint-Hilaire, que assinalou nas suas andanças que os ranchos poderiam estar sem portas ou mobília, mas o seu morador ostentava algumas peças de prata para seu uso pessoal.
Seriam facas, mates, rastras ou esporas. Talvez uma destas peças, talvez todas. A prataria constituiu na América do Sul, e especialmente no Prata – facilitado pelo contrabando do metal oriundo de Potosí – o grande luxo dos nossos paisanos. No período de dez anos da Revolução Farroupilha, o Rio Grande do Sul mergulhou em uma grave crise econômica, que bem verdade, começou antes do famoso 20 de Setembro. Mas superado esse conturbado momento social e político, as charqueadas – especialmente as de Pelotas – recuperaram sua pujança, influenciando diretamente a produção artística da prata, um renascimento.
Novamente nos valemos de registros fotográficos e iconográficos para atestar que a riqueza dos aperos acompanhou os gaúchos no Paraguai, depois nas revoluções de 93, 23, 24 e depois… Sumiu, ou melhor dizendo, minguou. Esse hiato na cultura gaúcha ainda não é totalmente compreendido. Muitos alegam que a vitória aliada na 2ª Guerra Mundial afirmou a supremacia dos Estados Unidos no mundo, com um boom econômico no pós-guerra e uma superexposição do “estilo americano” no rádio, revistas e cinemas.
Seria este o único motivo para um quase desaparecimento da arte da prataria aqui no nosso Estado? Difícil responder, mas o fato é que essa importante arte, arraigada na cultura gaúcha, diferente da Argentina, chegou agonizante ao fim do século XX.
Mas uma arte tão nobre e com tanta história, não morre facilmente. O grande Atahualpa Yupanqui, em Destino del Canto, escreveu: “Ninguna fuerza abatirá tus sueños, Porque ellos se nutren con su propria luz”.
Raul Sartor Filho é um destes elegidos, como bem assinala o poeta argentino. De um sonho, de uma luz, nasceu em Bento Gonçalves, em 2017, a Escola de Artes Santo Elói. E nada é por acaso. Nos primeiros dois anos, passaram pela redentora escola, mais de vinte alunos. São novos profissionais, apaixonados pelo ofício, que oferecem, como no passado, seu trabalho e conhecimento para “vestir” e adornar o mesmo ídolo de antes.
Nesse período de funcionamento, a produção individual dos alunos gerou, a cada novo trabalho, uma quantidade de limalha, que são restos de prata contaminadas com outros metais. O que fazer com esse material? Passando por um processo de purificação, para isolar o metal precioso, essa limalha readquire a pureza inicial. Torna-se matéria prima. Penso que as boas atitudes merecem, sempre, serem reconhecidas. Por unanimidade, todos os alunos doaram suas limalhas para a confecção de novas peças.
Foram cerca de 300 gramas de prata, que ganharam pelas mãos do Mestre Raul, novos contornos. As três peças produzidas estarão disponíveis para apreciação no espaço cultural da ABCCC durante a Expointer e no 2° Encontro Internacional de Prateiros, importante encontro promovido pela escola, que vai acontecer entre os dias 10 e 13 de outubro, em Bento Gonçalves. E mais, o valor obtido pela venda das novas obras será revertido para entidades beneficentes.
Com o perdão da redundância, vivemos um novo Renascimento da prataria gaúcha!