Buenas indiada, tudo firme e forte?
Chegaste a ver o que o Jornal O Globo escreveu sobre a repercussão do post da cantora Shana Muller sobre o machismo nas músicas gaúchas? Não? Então confere aqui abaixo.
RIO — Apresentadora há quatro anos do “Galpão Crioulo”, mais importante programa de TV sobre a cultura tradicional do Rio Grande do Sul, a cantora Shana Müller começou recentemente a se incomodar com algumas letras do cancioneiro gaúcho, que comparam as mulheres a animais e pedaços de carne, ou tratam a violência contra companheiras como algo natural. No último dia 7 de abril, resolveu tornar o seu desconforto público. Em um texto publicado no site do programa, fez duras críticas a representação feminina em músicas clássicas e contemporâneas da região — algumas tocadas regularmente no próprio “Galpão Crioulo”. “A cada nove segundos uma mulher é violentada e música, sim, comprovadamente, incentiva isso; justifica. E o pior: massifica o pensamento comum de que a mulher é menos, é coisa, é bicho!”, desabafou, fazendo um apelo para que os compositores que insistem nesse tipo de temática se atualizassem e deixassem o machismo no passado.
Raro no universo mainstream da música gauchesca, o posicionamento da apresentadora enfureceu os fiéis adeptos do “tradicionalismo” — como é conhecido o secular movimento criado para preservar as tradições locais. Postado também em sua página no Facebook, teve 5,8 mil compartilhamentos (até então, a maior polêmica que a cantora havia causado nas redes sociais remontava à Copa de 2014, quando revoltou a ala separatista do movimento ao postar uma foto segurando a bandeira do Brasil, e não a do Rio Grande do Sul).
“Termine de uma vez sua carreira com honra e não tente levar nossas músicas pro fim com você (…) Cuidado com a nossa cultura (a mais linda do mundo, por sinal)”; “Quer fazer média com a imprensa progressista do centro do país. Mas vai carpir um lote”; “Mais uma feminista que deve estar recebendo dinheiro do governo pra encher o saco”; e “Tai (sic) uma mulher que não sabe merda nenhuma da cultura gaucha e quer aparecer” foram alguns dos comentários feitos por homens em seu post, mal recebido também por algumas mulheres. Houve ainda comentários positivos de ambos os sexos (embora, segundo a própria cantora, em menor número que os negativos).
Identificada com as tradições gaúchas e conhecedora de seus tabus, Shana sabia que estava mexendo num vespeiro. Mas foi estimulada, como explicou no texto, por uma semana “tomada pelo tema mulher”. Ela se referia às denúncias de abuso a Emilly, vencedora do “Big Brother Brasil”, e ao afastamento de José Mayer, acusado de assédio sexual, da próxima novela da Globo — mas também citou a intervenção similar de Titi Muller, que, algumas semanas antes, criticou ao vivo a misoginia das letras do DJ israelense Asaf Borgore, na cobertura do Lollapalooza para o canal Multishow.
— Os movimentos de consciência são importantes nesse sentido: um assunto vem tanto à tona que te desperta um alerta — diz a cantora, de 37 anos. — Nos quatro anos em que apresento o programa, talvez tenham ido lá cantores apresentando letras com esse significado machista, e eu não tenha percebido. Agora o meu alerta estava ligado. Eu não quero ter razão, nem concordem comigo, quero simplesmente que as pessoas pensem a respeito. E acho que consegui esse mínimo.
Depois do questionamento em torno das tradicionais marchinhas cariocas no último carnaval, chegou a vez da música regional gaúcha de se confrontar com reivindicações contemporâneas?
— Acho que, como todos lugares do país, temos muito que evoluir — diz Shana. — Houve uma evolução da posição da mulher na sociedade, do entendimento do que é ofensivo ou do que incentiva o preconceito de gênero. Mas a gente (no Rio Grande do Sul) não se atualizou no sentido de perceber que tipo de relação uma letra pode estar perpetuando. Esse meu pensamento surgiu quando eu estava gravando o programa com um grupo mais jovem, cantando uma música feita por eles, no tempo de hoje. Eram meninos de 20 e 30 anos compondo coisas que ainda põem a mulher como uma fruta numa feira.
A intervenção de Shana, que diz não se considerar feminista, foi inspirada pelo artigo “Nem chinoca, nem flor, nem morocha!: Sobre o machismo e a música gauchesca”, escrito pela etnomusicóloga e instrumentista Clarissa Ferreira em seu blog “Gauchismo Liquido”. Uma denúncia dos “discursos musicais e performáticos” que “coisificam as mulheres”, ele foi publicado em 2014 e tem como base um estudo acadêmico de 2010 ( “De beija-flor a urubu: representações das mulheres na música gaúcha”, de Laura Rosa da Silva e Leandro Castro Oltramari ), que compila e analisa composições do cancioneiro local. Um sinal de que a problematização das letras tradicionalistas não é novidade, já ronda há algum tempo as universidades e outros ambientes. Agora, porém, o debate ganha outra dimensão tendo em Shana Müller uma porta-voz dentro da indústria cultural.
Para Clarissa, que faz mestrado em música gaúcha tradicional e se considera uma das “poucas mulheres a participar do movimento nativista do Rio Grande do Sul”, o posicionamento público da apresentadora é uma “revolução”.
— São pouquíssimas mulheres que participam ativamente dentro do movimento — explica a etnomusicóloga. — A cultura gauchesca é baseada em uma sociedade patriarcal, onde o espaço da mulher fica renegado ao segundo plano. Shana foi uma dessas poucas mulheres que alcançou o destaque, muito também por apresentar o “Galpão Crioulo”. Acredito que esse posicionamento dela, devido ao seu local de fala, é poderosíssimo e revolucionário, e certamente pode incentivar demais mulheres do meio a se manifestarem, pois ainda há um grande tabu sobre esse assunto no meio musical local. Mas vejo muitas mulheres hoje questionando esses lugares na cultura gaúcha, principalmente as jovens, reivindicando esse fazer parte, antes de tudo.
Tanto Shana quanto Clarissa dão exemplos representativos da “coisificação” da mulher em sucessos amplamente tocados nas rádios e em bailes. É o caso, por exemplo, da letra de “Não chora minha china véia”(composta por Elton Saldanha em 2003), que compara o trato da china (“mulher”, no léxico gaúcho) com o de uma égua: “Não chora/ Me desculpe se eu te esfolei/ Com as minhas esporas”. E conclui: “E se a china for embora/ Eu faço voltar à laço”.
Outro exemplo é o hit “Ajoelha e chora”, lançado pelo grupo Tchê Barbaridade em 2000: “Quanto mais eu passo o laço/ Muito mais ela me adora/ Mas o efeito do remédio que eu dei/ Foi melhor do que pensei/ Ela faz o que eu quiser/ Lava roupa, lava prato”. O estudo de Rosa da Silva e Oltramari recenseou outras 80 músicas que reduziam mulheres a coisas, desde a costela de churrasco a bebidas alcóolicas.
Professor da Universidade de Passo Fundo, o historiador e jornalista Tao Golin estuda há muitos anos o que ele chama de “cultura da violência” no movimento tradicionalista gaúcho. Ele vê as comparações da mulher com animais e pedaços de carne como o efeito de uma “estética da animalidade”, que vigoraria na cultura dos campos da região.
Elton Saldanha, compositor de “Não chora china veia”: “Me perdoa se te machuco com minha esporas” – Divulgação / Agência O GLOBO
— São noções de macheza que foram tomando o espaço social e simbólico a partir dos paradigmas do campo, onde o touro, por exemplo, é medido por quantas vacas ele dá conta. Isso se transformou numa cultura de massas: adotam o vocabulário usado no campo para lidar com animais para nominar experiências humanas.
Segundo o historiador, é difícil criticar o movimento tradicionalista, que teria construído um monopólio da identidade cultural gaúcha. Quem questionar qualquer um de seus aspectos, é visto automaticamente como contrário ao “verdadeiro Rio Grande do Sul”.
— Eles esperavam que a Shana fosse uma representante deles. No instante que não se transforma em porta-voz desse universo medíocre, ela se torna visada — explica.
‘A música gaúcha tem uma temática cultural conservadora , algumas letras podem ter algum excesso mas isso não é diferente da musicalidade brasileira’
A maioria dos expoentes da música regional gaúcha ouvidos pelo GLOBO, porém, defenderam a apresentadora e suas posições. Entre os autores das canções citadas por ela em seu texto, apenas os membros do Tchê Barbaridade declinaram o pedido de entrevista, para “não entrar em polêmicas que não nos competem”. Já para Elton Saldanha, o “tema está em evidencia e a discussão é fundamental”.
— A música gaúcha tem uma temática cultural conservadora, algumas letras podem ter algum excesso mas isso não é diferente da musicalidade brasileira com temas conhecidos como “Ai , que saudade da Amélia”, de Mario Lago, ou “Loira Burra”, de Gabriel Pensador. Minha opinião é que podemos sempre melhorar o texto , a poesia e sobretudo ao tratamento com temas transformadores como é a igualdade de gênero.
Sobre “Não chora china véia”, o compositor afirma que a letra é “figura de linguagem”:
— “Me desculpe se te esfolei com as minhas esporas”, como autor o que quis dizer foi: “Desculpa se te magoei”. A interpretação da letra que escrevi não tem nenhuma intenção de provocar polêmica ou ofensa às mulheres.
Um dos músicos com letras mais citadas no estudo de Rosa da Silva e Oltramari, João Luiz Corrêa, autor de versos como “Dou de mão na minha armada/ Pois china eu laço com os tentos”, diz que “não é cabível incentivar a violência contra a mulher”. Ele acredita que o ouvinte mais urbano (ou “social”, como chama) se choca com o linguajar típico do campo por não entender os seus costumes. Por conta disso, muitos músicos, incluindo ele, têm evitado de gravar canções que poderiam ser mal interpretadas.
— A gente tem o costume de falar assim, os homens se cumprimentam se chamando de “bagual”, que é um cavalo garanhão. Quem não conhece pode não entender, achar que é bullying, mas não é maldade, é o nosso linguajar. Na música, eu tenho um cuidado maior, mas não tem como fuigir totalmente. Se não puser um molho na composição, ela passa despercebida, nao é vista como gaúcha.