Eron

O escritor russo Liev Tolstói, que nasceu ainda no século dezenove – e um dos maiores da humanidade –, celebrizou-se ao escrever os agora clássicos Guerra e Paz, publicado pela primeira vez em 1869 e Ana Karenina, em 1877. No entanto, uma das passagens mais lembradas de Tolstói é uma frase simples e ao mesmo tempo de um peso extraordinário.

Uma frase tão replicada, tão reescrita e tão copiada que sua autoria por vezes se perde, se esvai, para ganhar algo de mito ou quem sabe, algo de folclore. “Canta tua aldeia e cantarás o mundo” sentenciou certa vez, com ares de profeta, o escritor que eternizou sua imagem ao ostentar longas barbas brancas e um olhar vivo e penetrante. Canta tua aldeia. Mas será que o mundo, o nosso mundo, tão globalizado, ainda escutará esses distantes cantos dos pequenos rincões, das pequenas aldeias?

Desprovido da longa barba branca, mas talvez com o mesmo olhar de quem consegue ver depois das coxilhas, o bajeense e também escritor Eron Vaz Mattos vem cantando, a mais de cinquenta anos a sua pequena grande aldeia, de verdes e infinitos campos, e com uma peculiaridade interessante: do solo, arenoso, brotam puras vertentes do seio da terra. Pequenos e cristalinos olhos d’agua, como são conhecidos pelas gentes crioulas daquela terra.

O cenário, de tão amplo que não erramos ao classificar como um universo, vem sendo, neste meio século, explorado nas suas infinitas nuances. “Do canto matinal dos bem-te-vis”, o ringido de velhas carretas puxadas por bois mansos, ou os rangidos dos bastos numa recorrida pelas estâncias aos “xucros atores daquele antigo cenário”, como bem registrou em uma de suas centenas de letras musicadas por diversos cantores. Nada deste universo foi esquecido.

As memórias de Eron, extensas pesquisas, entrevistas, além de uma irrefutável vontade de preservar a memória coletiva da sua terra natal, vem sendo compilada em versos e coplitas campeiras, poesias e trabalhos mais robustos, como Meu CantoPoemeto de Campo e AquiMemorial em Olhos D’agua, sua obra maior, publicada pela primeira vez em 2003 e reeditada neste ano, com um importante acréscimo de fotos – registros únicos –, que levam os leitores a um universo em preto-e-branco, onde podemos ouvir os sons e sentir os cheiros daquela campanha tão pura de então. Também estão lá os anônimos, formadores de uma paisanada que de tão campeira, fazem brotar lágrimas nos olhos azuis do autor, que os enxerga sempre de esporas calçadas e montados nos bons fletes da querência.

“Tenho a vida de a cavalo

Entre alegrias e penas

Por andejar tempo a fora

ctg saPowered by Rock Convert

Mudei a cor da melena

Semeando tombos de pealos

De Cerro Largo à Bolena”.

 

A sua casa, o “parador”, como ele costuma chamar, é ponto de encontro costumas de admiradores das coisas do campo e da cultura gaúcha. Num dos cômodos da casa, uma importante biblioteca com centenas de títulos ligados ao universo rural fornece o apoio necessário às constantes pesquisas. E é nas madrugadas, antes do clarear do dia, que esse caudal de conhecimentos emerge dos mesmos olhos d’agua, para dar luz, entre os mates, a dezenas de escritos dessa aldeia com uma força universal. Aqui, memorial em Olhos D’agua é um registro único, pela sua força, pela robustez de informações compiladas numa vida dedicada ao campo. Aqui é fundamental a todos aqueles que buscam, como Eron, cantar a sua aldeia que é, sim, universal.

Deus nos concedeu a graça de ter nascido, crescido e vivido entre homens excepcionalmente campeiros e, por isso, ficamos entristecidos quando vemos, nas atuais festas campeiras, determinados maturrangos por excelência ditando normas absurdas, irresponsáveis e deturpadoras dos verdadeiros costumes para os bem intencionados jovens de hoje”.

Henrique Fagundes da Costa

@dacostahenrique

* A obra Aqui, memorial em Olhos D’agua está disponível na loja Mates y Asados em Bagé ou diretamente pela fanpage de Eron Vaz Mattos no Facebook.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui