Há alguns anos, nossa entidade foi convidada para se fazer presente no lançamento de um espaço, destinado à vida e à obra do nosso folclorista maior, J.C. Paixão Côrtes, onde ali estavam expostos retratos, livros, peças particulares, discos, manuscritos e tanto mais de material histórico e inédito sobre o pesquisador e sobre a nossa gente rural de antanho. O folclorista estava presente, gerando comoção e entusiasmo no público em geral, principalmente por não estar, naquele momento, tão ativo nos eventos sociais a que era convidado (apesar de sempre trabalhando, “a mil”).
O evento foi pela manhã, se encerrando ao sol a pino do meio-dia. Porém, após a inauguração, a apresentação do evento e o tradicional coquetel, todos foram convidados para um espaço externo e maior, onde um grupo de danças regional realizaria uma pequena homenagem, em forma de dança, ao mestre presente, fundador das ideias que nosso sentimento hoje abraça e que instituições usam com norteadoras de nossos valores.
Ansiosos, encontramos um grupo mirim… Uma mirim grande e local, preparada para bailar, no meio da rua… recheada de grandes alegorias coloridas, com modelo uniformizados, com peõezinhos usando coletes, casaco, chapéus e esporas, com prendinhas vestindo trajes coloridos (de todas as cores possíveis, claras e escuras), vestidos compridos (no peito do pé, para elas correrem, bailando no asfalto), postadas com maquiagens lembrando festas de noite (para dançar debaixo do sol de meio-dia), e outras observações mais, muitas das que nem nos recordamos.
O grupo apresentou sua intenção, como sendo uma pequena homenagem ao mestre em forma de dança. Porém, a apresentação foi de uma coreografia artística, viva e alegre (onde o pesquisador seria um dos personagens da coreografia), de criação pessoal (lembrando que a arte é uma ação pessoal da vivência, e não de culto folclórico), assinada com autores próprios, sem representatividade maior para a cultura coletiva símbolo do nosso Estado (justamente recolhida e publicada por nosso folclorista, ali homenageado), sem ao menos apresentar um tema sequer, dos 100 motivos recolhidos no nosso folclore (pelo também mesmo folclorista, ali homenageado)… sem, inclusive, repassar ao público social presente, as personalidades, os valores, os caracteres, identidades e detalhes símbolos da nossa gente rural Rio-Grandense (também publicada por nosso folclorista, ou seja: não inédita, e sim divulgada e ensinada).
As crianças, claro que estavam no melhor momento de suas vidas, na alegria mais intensa, apresentando suas paixões bailarinas ao “culpado” por fazê-las estarem ali. Nada pode ser culpa das crianças, nunca… porém, estavam ali (como em todos os lugares, junto a essas categorias de base), seus responsáveis e incentivadores… os que escolhem, dizem, conduzem seus atos, inclusive de forma artística na dança.
Eis a questão!
Após assistir à apresentação, um representante da nossa entidade, também dançarino de anos, conhecedor das pesquisas e das formas infinitas de sua divulgação, observa e faz um comentário inteligente, que nos deixa a pensar. Um comentário, talvez algo “bruto”, porém tão real, onde ressaltava:
– “Tchê… Olhando essas apresentações, não entendo bem o que os grupos atuais querem passar. Talvez nem eles saibam. Mas, é como se eles dissessem ao homenageado: ‘Seu Paixão, a gente vai te homenagear, mas não vai fazer nada do que o Sr. quer, do que Sr. pesquisou e nos ensinou! Pode ser assim’?”
E esse é o reflexo dos pensamentos dos grupos da nossa atualidade.
As pessoas querem homenagear nomes, pessoas, mitos, lendas, caminhos já construídos, prontos e pavimentados, porém sem sair das zonas de conforto, sem buscar bibliografias, livros, artigos, entrevistas, publicações e ensinos que os “homenageados” nos entregaram com muito afinco, vigor, suor e dedicação… Além, de com muito amor e paixão!
Não podemos falar pelos outros… Nunca teremos essa intenção! A ideia é expor a nossa opinião, através das análises a fatos que presenciamos…
Sabemos que Paixão Côrtes, por exemplo, nunca foi adepto à criação da “bombacha Paixão Côrtes“… Nunca aceitou exaltarem o seu nome, acima do nome de “Caringi” (relação à estátua “O Laçador”)… Nunca quis seu nome como título de troféu algum que seja (como tentaram)… Nunca foi adepto a homenagens pessoais e egocêntricas (essas que tanto lhe pregam)… Querendo, sim (e isso sempre), a exaltação das obras resgatadas e distribuídas por ele (que é ampla e estudada em todas as esferas), como um respeito amplo e digno às pessoas simples e esquecidas com que ele conversou e que, essas, realmente construíram a identidade simbólica verdadeira desse nosso Estado.
Pois, o que é mais importante: A estátua “O Laçador” ou o que ela quer transmitir a quem entra na cidade de Porto Alegre (por exemplo)?
Devemos nos recordar todos quando, no ano de 2010, Paixão Côrtes foi eleito patrono da 56ª Feira do Livro de Porto Alegre, onde, mesmo com o cargo de homenageado, ele foi quem prestou homenagem, levando a Porto Alegre e à Feira do Livro, de maneira inédita, em mais de meio século de existência, manifestações rurais autênticas e folclóricas (como a dizer que “ele não seria nada sem as manifestações recolhidas e sem esses informantes”, e que eles sim, mereciam estar na vitrine).
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As manifestações foram as mais diversas: Masquê (de Santo Antônio da Patrulha), Terno de Reis (da região também de Santo Antônio e Osório), Folia do Divino (da Criúva), Maçambiques (de Osório), Quicumbis (de Tavares), Corredores de Cavalhadas (de Cazuza Ferreira e Tavares), grupos de danças (de todas as cidades possíveis), afora outros historiadores, pesquisadores, folcloristas, e tantos e tantos mais.
Que bom seria se, este ano, que seu nome será lembrado também como tema anual dos Festejos Farroupilhas de 2019 (“Vida e obra de Paixão Côrtes”), essas manifestações interioranas todas, voltassem historicamente a povoar Porto Alegre e seus espaços públicos, nos presenteando (e presenteando assim também a memória do homenageado), com as cores e símbolos humildes que ele mesmo sempre colocou na vitrine, como o principal. Poderíamos (e ainda podemos), claramente seguir o exemplo didático, social e cultural da histórica Feira do Livro do ano de 2010, que tanto marcante foi. Há espaço no Parque Farroupilha para todas estas manifestações do nosso Folclore estarem sendo demonstradas, reverenciadas e integradas.
Lembramos também que, ser um “artista” acima de ser um “cultuador” (de reverenciador) é negar a simplicidade e humildade (cultural e econômica) histórica da nossa gente. É um ato, mal comparando, de “elitismo”, de negação do local onde estamos inseridos… De estrangeirismo velado.
Não somos mais importantes que a cultura coletiva simbólica do nosso Estado!
Alguém será que identificou, para aquelas crianças, a posterior, onde estava a “falha” de tudo? O que estava mal “invertido” na apresentação daqueles meninos e meninas conduzidas por “responsáveis”, anos atrás? Muitas delas hoje são juvenis, são adultas, são instrutores de outras bases, instrutoras de prendas, avaliadores, diretores, tradicionalistas ativos…
Um dia serão patrões, coordenadores, chefes de cargos, talvez até mais… E assim vão… Levando adiante suas experiências, acreditando que todas elas foram positivas e tão valorosas para serem didáticas e, assim, ensinadas como norma e nortes a um movimento (seja intelectual ou institucionalizado)… E criarão escola… Escola que um dia escutará, talvez, que “podem não estar em um caminho tão sadio culturalmente”… E não acreditarão… E acharão isso uma agressividade imensa, uma imposição, uma “facada pelas costas”… Ou quem sabe até uma simples opinião contrária, apenas!
Os tempos estão outros…
Os tempos são de “selfies” com lendas vivas num dia, e de textos e reportagens contestando “suas obras” no outro… Os tempos são de “letras” com homenagens múltiplas a mestres regionais, revestidas com músicas, ritmos e arranjos “alienígenas ao nosso povo”…
Os tempos são de criações coreográficas exaltando nomes num final de semana, com pouco entendimento sobre ensinos e normativas exaltando essas intelectualidades em outro (pelas mesmas pessoas)… Os tempos são de “lembranças” de quem reverenciou o simples, adotando requintes que só se encontra em palcos americanos e parisienses modernos e comerciais… Os tempos são de confusões entre as vivências e os símbolos…
Os tempos são de confusões entre “pesquisa” e “pesquisa folclórica”… Confundem “leitores” com “pesquisadores”… Escritores com bons e sérios escritores… Os tempos são de estudos sérios serem chamados de “modas criadas”… Os tempos são de símbolos desconstruídos, somente em prol de uma manutenção “concursiva” (que, mesmo não concordando, não deixa reflexo significativo de retorno amplo cultural à nossa sociedade civil)…
Os tempos são de “alertas” sendo tratados como “proprietários da verdade”, sem ao menos conhecerem as trajetórias e os suores despejados por quem teve a humildade de aprender e estudar, enquanto muitos trabalharam o ego acima dos estudos sérios, técnicos e científicos (como é o estudo do Folclore)…. Os tempos são de futuros sem identidade – basicamente!
Pois verdades estão sendo tratadas como: “agressividade”!
E é assim que seguimos por diante, sonhando em ainda querer um mundo de culto (longe de direcionamentos pessoais e opinativos), com mais didática cultural e identidade gaúcha Rio-Grandenses (admirando os outros, mas sendo Rio-Grandense, acima de tudo, com defesa, militância e orgulho)!
Pois, como disse certa vez um colega: “Opinião e conhecimento são duas coisas totalmente diferentes!”
Baita texto!