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*Foto de capa: Localidade de Sanga-Funda

 

Já no início deste ano, com voltas de praia e de “réveillons” e com a proximidade do dia 6 de Janeiro – Dia de Reis, ou de Reses – surgiu a oportunidade que fixar a importância desta data, para toda a nossa cultura, revisitando um local bem importante, porém pouco conhecido – junto àquela data de também virada de ano, de 1950 para 1951 – nos adentrando naquela pequena localidade, antes pertencente à Maquiné (antigo Distrito rural de Osório), mas hoje parte do município de Terra de Areia.

Possivelmente, hoje, a mesma localidade afastada daquele tempo, tão erma, rural e litorânea, encrustada na encosta da serra (“lá aonde o Bugio canta!”), dotada de agricultores de origem e cepa “cabocla” (com mesclas com outras etnias), contadores de causos marinheiros, que desenharam – mesmo sem notar – muito do que hoje se cultua como nossas referências e tradições tão originais e remotas de uma parte do nosso verdadeiro Rio Grande. Certamente com o mesmo bar, na mesma na esquina, das mesmas estradas de chão batido interioranas. Sem salão de baile, dotada de ranchos humildes de madeira, com a mesma sonoridade da sanga que corre atrás das casas, dando nome ao lugar.

A SANGA-FUNDA!

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*Foto: Armazém do antigo Seu Quinóta

Pois foi justamente na virada de ano de 1950 para 1951 que o folclorista J.C. Paixão Côrtes, na mesma Sanga-Funda, ouviu, pela primeira vez, os Ternos de Reis, cantados pelo mestre Leodato (Leodato Leonardo Alves, na época com seus 64 anos)… Isto depois de horas do cansaço de uma longa viagem… Não essas de 1 hora e 45 minutos de hoje, mas pegando um ônibus de linha até Osório, uma carona em uma carroceria de um caminhão verdureiro até Maquiné e, depois, alugar uma carroça, puxada por dois burricos, para chegar, em plena boca da noite, naquela desconhecida (para ele) Sanga-Funda, mais 26 quilômetros adiante.

Isto tudo em plena efervescência das primeiras pesquisas – suas e do Lessa – sobre nossos temas musicoreográficos!

Não somente os Ternos de Reis… Mas a localidade de Sanga-Funda acrescentou – em pouquíssimos dias – muito mais à nossa cultura, trazendo a tona o tema da Queromana – música e dança – ensinada, naquela mesma visita de Reses, pelo mesmo Mestre, o seu Leodato, cantando:

“Nunca vi figueira torta

Botar figo na raiz, ai!…

Nunca vi moça solteira

Ter constância no que diz, ai!”

Cantada e ensinada, ao lado daquele mesmo “armazém”, ainda em pé…

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*Foto: A sanga que dá nome ao local

Quem não se recorda da abertura emocionante, relatada primeiramente no livro “Terno de Reis e Cantigas do Natal Gaúcho”, lançado em 1960, com o título de “Foi Assim”!? Texto, a posterior, replicado em “Natal Gaúcho e os Santos Reses” (1982) e “Tirando Reses no Natal Pampeano” (2000), onde relata:

“Mas o silêncio do alvorecer, embalado pelo sussurro da sanga funda (que dava nome ao lugar) e do canto da mata, quebrou-me. Era uma música estranha, com sabor de cantochão, que se misturava ao perfume silvestre do meu colchão de pasto e o aroma gostoso do meu travesseiro de marcela. Vozes ásperas, como de quem trabalha na enxada, mas afinadas como batidas de arapongas, cantavam assim: ‘Agora mesmo ‘cheguêmo’, na beira do seu terreiro!… Para ‘tocá’ e ‘cantá’, licença peço ‘premero’!’ Tentei me refazer do sonho, quando senti que a noite me roubava um ano!”

Foi dessa feita que se notou por primeira vez a existência dos “Levantes” nas danças, com seus “rallentando” e “accelerando“, suas inflexões vocais, os modos de tocar a viola, o modo tradicional de se tocar e segurar a rabeca. Afora um grande Xixo Bruto, realizado num rancho de madeira (ao lado do bar do seu Quinóto), onde tiveram de recorrer aos pés-de-cabra, para arredar algumas paredes internas, aumentar a sala, caber todos os convidados e sair bailando também algum “Serrote”, esfregando a sola das botas pelo soalho antigo de madeira da região (fato constantemente contado, lembrado e repetido, com alegria, em pequenas charlas, textos e cursos do nosso mestre maior).

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Não houve outra alternativa… Tivemos de ir lá!

A casa de madeira, ao lado do bolicho (a da visita dos “Reses”, do “Xixo Bruto” e do “Baile de Pé-de-Cabra“, local onde as moças posavam) não existe mais. Era tipo uma “pensão”, de madeira, com avarandados e pilares finos de tábua. Já o bar, o mesmo bar das fotos antigas e históricas, algo tipo de sobrado, com a parte de baixo de alvenaria e a superior de madeira, onde ficavam os quartos, ainda estava lá, de pé. Foi reformado há décadas, devido a força natural do tempo. Mas estava lá, resistindo, um tanto aumentada, um pouco diferente e sendo administrado pelo seu segundo dono em décadas (local onde os homens posavam, onde Paixão Côrtes ficou e onde embaixo se encontrava diariamente a sociedade masculina da região, para contar causos, bebericar, fazer algum “sortido” ou passar simplesmente o tempo da solidão de um clima soprando a forte maresia a do nosso litoral gaúcho, rebojada na costa da serra do mar).

Que lugar para um homem de fronteira se passar uma virada de ano, em plena década de 1950/1951!? Quem iria imaginar que de uma simples virada de ano traria tanta coisa para a nossa cultura!?

Um ainda simples local, rota de tropas, mulas e paulistas, cheio de causos pescadores, cantos caboclos, violas, rabecas e tambores, longe das imaginações modernas e europeias, de contos “Luizianos” e franceses, que permeiam a imaginação fértil de quem busca somente longe as coisas tão próximas da nossa gente: “é de onde o que nunca teve valor, passou a ser respeitado e valorizado”… Por uma população cosmopolita e em busca de entretenimento… Mas que na verdade é a verdadeira identidade da gente da nossa terra: simples e humilde.

Só lá pra saber o que é a nossa gente!

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*Foto: Livro “Terno de Reis e Cantigas do Natal Gaúcho”, de 1960

 

E estava lá… O mesmo local… Com a mesma calmaria… Com o mesmo canto de pássaros… Com as mesmas estradas de chão… Com a mesma sanga correndo, riscando funda nos empedrados e lajeados, beirando as plantações de bananeiras, geralmente erguidas pelos descendentes germânicos que lá hoje residem, em seus ranchos, também de madeira. O mesmo bolicho estava lá, com moradores locais (nascidos entre 1948 e 1950) o deixando ainda viver, na calmaria plena de uma outra simples manhã, deixando o tempo passar, entre causos e risadas, entre visitas e pedidos, algum “martelo” de canha (talvez azulzinha, da marisqueira), contando sobre as coisas, as pessoas e as “novas” da região.

Por vezes se alembravam dos travesseiros de marcela, dos pesados colchões de retalhos, dos colchões de pasto, dos antigos moradores, dos remotos bailes da volta, de alguma Meia-Canha, que muito se bailou alegremente por alí, de muita Marca-de-Damas dançada, alguma Marca-do-Guaraná, muitas Mazurcas, “Teróles”, gaiteiros, violeiros, e tantas outras diversões mil e sadias do nosso povo (realmente povo)… Sem esquecer, claro, dos Ternos de Reis, e daquele mesmo seu Leodato, o famoso Mestre de Terno da região, já falecido, mas recordado por todos morados da região… O mesmo que nos deixou a Queromana, hoje bailada tanto pelos eventos tradicionalistas do nosso Brasil.

O tempo passa, mas que pecado tem o “vento criar raízes”?

Chega a ser estranho, chegar na calmaria erma desse “armazém” e dizer que a Sanga-Funda é um local de muita história e de grandes lembranças (como fizemos)… Nos estranharam… Mas ele é! É uma pequeníssima aldeia, cantada e bailada por todos, a ser ainda muito cantada e dançada por aí, mostrando que somos realmente universais e frutos de uma vida líquida, porém, ao mesmo tempo, tão enraizada no que fomos!!!

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*Foto: Dos livros de J.C. Paixão Côrtes

 

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