santo amaro do sul

Há meses – na verdade anos – tinha vontade de dar um pulo na vila de Santo Amaro do Sul, um pequeno distrito do município de General Câmara, povoado hoje somente por cerca de 1000 habitantes, espalhados, na sua grande maioria, entre a zona rural e a área pesqueira da beira do Rio Jacuí (motivo da criação daquele povoado, exatamente naquele antigo ponto estratégico geográfico).

Há poucos dias achei alguns parceiros (coisa rara para essas “indiadas”), uma brecha na pandemia (há três meses não saio de casa para quase nada)… E fomos… Curiosos com tudo o que se avistava na volta!

Distante somente 75 quilômetros da Capital gaúcha, Porto Alegre, sua acessibilidade é muito fácil… E isso deve tornar a visita realmente cada vez mais atrativa e não postergada por todos, pois paga a pena.

O local é incrível… Bom para passeios em finais de semana, com a família ou com amigos; para um simples mate, mirando o pôr-do-sol entre-trapado pelos casarões seculares; para um “pic-nic” sentado no gramado de fronte à Igreja majestosa; para contar e escutar histórias e “estórias” cruzadas pelo local; uma simples charla sentando abaixo de uma das figueiras também seculares do local; e tanto mais.

Mas o sítio não é só para passeio e “estar”…

santo amaro

Muito já “passeou” e cruzou por ali… Tanto que nem cabe na imaginação… Mas é justamente com a inspiração é que podermos recriar cada possível momento, que o tempo quis que ainda se perpetuasse em forma de arquitetura e lembrança em cada canto do povoado.

Conta-se que, acerca de 1752, após a assinatura do Tratado de Tordesilhas (em 1750), o Governador Geral do Rio de Janeiro, o militar português Antônio Gomes Freire de Andrade (1685/1763), deslocando-se para o Sul, para ajudar à delimitar as Fronteiras imprecisas da região, junto com a Coroa Espanhola, teria estabelecido um pequeno – mas importante – armazém, justamente para abastecer as tropas portuguesas que constantemente subiam pela Rio Jacuí em direção às Missões Jesuíticas, em pleno embrião da Guerra Guaranítica (1754/1756), onde o mesmo Gomes Freire teria comandado também tropas luso-portuguesas, investindo contra os índios guaranis armados de lança, flechas e arcabuz, logo adiante.

A arquitetura é comum, para os prédios portugueses históricos de outras tantas localidades gaúchas e brasileiras (parte de Porto Alegre, Mostardas, Jaguarão, primitivas Estâncias e Sesmarias sulinas, Lages, Vacaria, Laguna, Florianópolis, Santo Antônio de Lisboa, etc.), mas hoje incomum frente à destruição progressiva do patrimônio histórico do nosso Estado (e Brasil), impulsionado pela desenfreada busca por um “modernismo”, à base de aniquilamento.

Parte das construções ali são tombadas Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)… E encontramos alguns prédios sendo reformados, de maneira bem atenciosa e criteriosa. Mas sabemos que a verba se torna escassa, para esses fins.

São casarões de um pavimento, na maioria… Geralmente uma porta central, com baldrame e marcos grandes de madeira nobre… Por vezes uma forte data marcada no topo da mesma… Janelões simétricos, dos dois lados… Cumeeiras de telhas, feitas com barro “nas coxas”… Paredes grossas, também de barro ou pedra moura… Assoalhos largos de madeira… Rebocos pintados a cal… Sinais da devoções ao Divino em topos e quinas de telhados… Sinais de tempo por todos os lados… Tudo o que deve ser compreendido, se falando de arquitetura histórica, que não é nada quando não imaginamos quem ali viveu e o quanto de gerações e de pessoas por ali não cruzaram e foram cuidadas por essas gigantes “moinhos” guardiões (como diria Cervantes)…

Pessoas estas que eram também provenientes daquela primeira leva de casais açorianos, aportados no Rio Grande do Sul em 1751 (e antes, em 1748, no Desterro catarinense), esperando a “retirada” indígena missioneira para, então, se deslocarem até lá (coisa que nunca aconteceu)… Pessoas estas que geraram a importante “etapa” dos posteriores “Continentinos”, tão falada e citada – talvez os primeiros, não sei – por Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, de 1952 em diante (ver “Aspectos da Sociabilidade Gaúcha”, 1983)…

Pessoas estas que, agora sim, absorveram os costumes crioulos e “gaúchos”, que pairavam cortando por ali… Que, em contrapartida, também depositaram costumes açoritas nesse mesmo “gaúcho-do-campo” (como citado por Aurélio Porto) adaptados às essas novas e inéditas civilizações, plantadas em uma paisagem, até então, nua, crua e virgem de fundações arquitetônicas…

Tudo era inédito… E o ineditismo desses encontros gerou, realmente, um amontoado de costumes também originais, distintos para com qualquer local imaginável do mundo… Muitos dos quais perduram até hoje, se não em uma bombacha rota, puída pela poeira das madrugadas aprumando a “maromba” pro embuçalar nas mangueiras, sim pelos genes e vícios característicos que habitam sob a pele grossa de pedreiros e mestres-de-obras, hoje habitantes das vilas das grandes cidades (que tem ganas “cada vez mais de crescerem”).

Estas casas realmente foram plantadas onde antes não havia nada… E ainda estão lá, de pé… Guerreando ante um tempo e um “progresso” avassalador… De pé, bem onde o casco de muitos cimarrões amassaram muito barro e muito sereno, cruzando livremente por esses campos nativos, talvez até fugido de alguma “três-maria” raivosa ou de algum “jarrete” golpeador, prenunciando a trovejada de um tombo, socando a terra onde a posterior se plantou a primeira pedra de fundação da região.

E está lá também… Uma dessas primeiras fundações também está lá, alicerçando um casarão importante, ainda de pé (mas cremos que não por muito tempo, infelizmente). Um dos casarões mais admiráveis do local, datado, marcado e carimbado com a incrível data de 1763, bem acima da porta por onde tantas choronas devem ter entrado e saído, arrastando sonoridades por um pampa, à época, ainda vazio… E que propagava parte desses ecos beira de rio afora, pra rebojar nas marolas macias e voltar em forma de história, séculos depois, em quem simplesmente parava atentamente à sua frente, imaginando quantas senhoras ou senhoritas, povoadas de sombrinhas de rendas nas mãos, olhar perdido no além, leques abanando ante as mormaceiras dos verões e dotadas com brilhos de marcassitas lustradas prendendo pontas de fichús, também habitavam as curiosidades chamadas por essas imponentes janelões.

É esta a casa onde nasceu, 10 anos depois de erguida (em 1773), o grande herói Farroupilha José Gomes de Vasconcelos Jardim… Isto somente alguns anos antes daquele 1787, marcado pelo relato – em uma simples, mas não menos importante nota de rodapé – apontado pelo também português José de Saldanha, onde teria se identificado por primeira vez a palavra “Gaúcho” (“Gauches”, na verdade) por estes redobrados de coxilhas.

“Santo Amaro foi elevada à condição de freguesia em 1773 para, em 1809, ser incorporada ao recém-criado município de Triunfo e, em 1849, ao de Taquari. Em 1881 é elevada à categoria de município.”

Nos diz um texto distribuído no local. E completa o dado:

“Em 1939, após a instalação do Arsenal de Guerra do Exercito Brasileiro, tem sua sede transferida para a margem do Rio Taquari, onde atualmente se localiza a sede do município de General Câmara. A vila de Santo Amaro estava condenada ao esquecimento.”

Que sacrilégio seria esquecer desse lugar! Quem conseguiria?

Inevitável não cruzar por essas ruas, antes de terra e barro, e não tentar imaginar parte dessas vivências também circulando por ali… Feito fantasmas, habitantes dos ventos que cantam nas beiras dos caseríos e nos pessegueiros plantados nos pátios dos fundos de cada ranchada…

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Mas outro motivo foi o que mais me chamou ao local…

Em 08 de Abril deste ano – algo pouco depois do início da pandemia – divulgamos uma pequena lista de 10 Filmes Gaúchos Para Assistir na Quarentena (e Fora Dela), onde, cronologicamente, apontado como o Filme de número 05, identificamos justamente “Um Certo Capitão Rodrigo”… Um clássico, realmente… Todos necessitam olhar…

Um Certo Capitão Rodrigo – fragmento da obra de Érico Verissimo “O Tempo e o vento” – foi rodado estrategicamente na Vila de Santo Amaro no ano de 1971, sendo dirigido por nada mais nada menos do que por Anselmo Duarte. As tomadas não necessitaram de adaptações externas, onde cada casarão estava já ali, externa e internamente, perfeitos para somente recriar personagens, trajes e “modos”, para povoar, de maneira visual, a imaginação das pessoas.

Tinha que conhecer esse tempo… De frente aos meus olhos!

Chamou muito à atenção, a casa onde hoje está localizado um pequeno museu, humilde e simples, mas necessário… E dotado de muita boa atenção de quem ali o cuida. Foi exatamente no deu local onde foi realizado o baile do filme “Um Certo Capitão Rodrigo”, onde dançou-se a Chula, o Tatu com Volta-no-Meio e a Chimarrita-Balão (esta com Paixão Côrtes, realizando alguns passos autênticos, inclusive com seus bate-pés, em “postura brasileira”).

Sou sincero que não sabia que ali tinha sido realizado o baile filmado… Foi uma surpresa… Mas quando a senhora contou, estava eu exatamente na mesma localização onde ficava a câmera, rodando a cena da Chula, com o quadro de Dom Pedro I ao fundo (onde hoje existe um painel com alguns trajes açorianos originais, trazidos direto da Ilha de São Miguel). Na hora me recordei inevitavelmente das danças do filme, que tanto assisti e reassisti…

E nem sabia que tinha sido gravado também na mesma Santo Amaro do Sul.

um certo capitão rodrigo

Fiquei imaginando a movimentação dessa filmagem, com cerca de 300 figurantes circulando por ali, hospedados nestas mesmas casas seculares, em um ano da já distante década de 70 (1971), possivelmente muito distinta das modernas locações, como a realizada em “O Tempo e o Vento” rodado em 2012 em Bagé (que presenciamos e participamos), dirigido por Jayme Monjardim.

capitão rodrigo antigo

“Um Certo Capitão Rodrigo” é um filme quase “documental” (já nos confidenciaram), tamanho a preparação e a preocupação para tudo o que se tenha levado às cenas… E muito aprendemos com ele.

Foras horas passeando pelos tempos “fiados” nas rocas do “vento” (não bem assim escreveu Veríssimo, mas vale a analogia), fiando novas lembranças, que posso aqui despejar em forma de pequenas e humildes frases (de quem escreve pouco em qualidade, mas de peito aberto em culto e devoção)…

Foram horas viajando em outros filmes, ali nunca rodados (mas que teriam também o seu verdadeiro espaço): Folias de casa em casa, levando a Bandeira do Divino, partindo Império ainda de pé (Império do Divino) para a benção de cada rancho; serenatas frente aos baldrames, chamando olhares pra fora; “balhos” e “chimarritas”, cantadas ao anoitecer; casamentos e batizados, finalizados em festanças; carretas “ringindo” de fronte às calçadas; barcos aportados, esperando mantimentos rumo às Missões; soldados chegando, para abastecer seus munícios; sonhos despejados, mirando o anoitecer; e anseios que o próprio tempo não apague este viver!

Este texto é somente um apanhado de “pretas” digitadas, para atiçar a curiosidade de todos… E lá um dia se achegarem e olharem, também com seus próprios olhos e imaginações!

Mas olhem para cada canto, demoradamente, sem lentes e celulares na frente… Parem, e prestem atenção… Imaginem… Lembrem daquele livro que leu… Daquele conto que escutou… Daquela tese que escreveu… Daquela foto antiga que gosta… Daquela pintura que emoldurou… Daquela dança que dançou… Daquele filme que assistiu… Daquela vida que não viveu (ou sim)… Tudo… Pois, tudo – tudo mesmo – também deve ter se passado ali.

Prestem atenção na bandeira dos Açores, imponente, em um mastro convidando a quem se adentra diariamente na Vila, estampada com suas nove estrelas – uma para cada Ilha do arquipélago – e, ao centro, de uma Pombinha dourada, irradiando luz ao futuro desta memória indelével.

Por fim, antes de irem embora, façam a devoção à Igreja, ponto central e culminante da visita… Se quiser, reze, principalmente para que ela esteja ali durante muito tempo, se não para sempre, de pé, abençoando todas as tantas, tantas e tantas gerações que por ali nasceram, cresceram, morreram e cruzaram, despejando suor e passos para um dia forjar esse Rio Grande que tanto adoramos, estudamos, contamos, cantamos e queremos bem, acima de tudo, se mantendo autenticamente sempre de pé, fecundando seu valores…

Um Rio Grande exatamente imponente, como aquela própria Igreja.

Percorra esses caminhos, proporcionando, a si mesmo, “viver as ansiedades, angustias, surpresas e inúmeras realizações, quando dos encontros” entre o que se é e o que se foi, passando adiante o que se absorveu no mirar de cada esquina, nascida antes mesmo – talvez – do primeiro “gauche” gritar pro mundo!

O Sinal-da-Cruz é uma benção à própria raça!

Não negue!

Vale a pena recorrer as estradas desse Sul, buscando por partes de nossa História e da nossa gente…

Pois, como certa vez nos disse meu amigo – posso chamá-lo assim – Odilon Ramos: “Quem percorrer a Querência pelos caminhos da história, decerto me encontrará!”

Salve!

Abraços!

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