Quase um ano atrás, nos deixava o santanense João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes.
Paixão Côrtes, como entrou para a história, o imortal “laçador” manteve acesa, durante sua longa vida, uma chama que creio não se apagará. Essa chama, bem traduzida no cuidado, carinho e proteção pelo legado cultural da nossa terra segue cintilante, dançando ao sopro dos ventos, mas ainda assim fulgurante. Essa chama, que hoje ilumina toda uma geração foi acesa há muito tempo. Um tempo já amarelado, de páginas gastas e muitas, lastimavelmente rasgadas ou perdidas.
Muito se perdeu, é verdade. Mas nem tudo é tragédia. A memória é como a água, que corre muitas vezes longe, mas sabe descansar nalgum remanso. E uma vez ou outra, essa memória sabe ressurgir, naquelas páginas amareladas que teimam em voltar à luz.
João Cezimbra Jacques publicou em 1883 o seu Ensaio sobre os Costumes do Rio Grande do Sul, precedido de uma ligeira descrição física e de uma noção histórica. O militar nascido em Santa Maria e que fora voluntário aos dezoito anos na Guerra do Paraguai, era afortunado com um raro intelecto e um proeminente espírito patriótico. Essas nobres qualidades o conduziram ao pioneirismo e, utilizando suas próprias palavras, Cezimbra Jacques foi “o primeiro iniciador de sociedades dessa ordem no Rio Grande do Sul com a fundação” (do Grêmio Gaúcho) em abril de 1898.
Entre seus objetivos estavam “cultivar os usos salutares do passado, já nos outros ramos de atividades de um povo, já nos jogos e diversões, de modo a poder-se reproduzir esses quadros da vida dos nossos Maiores nas comemorações dos grandes acontecimentos do passado…”.
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Muitas vezes, nos debruçamos sobre certos temas sem, no entanto, recorrer à memória. Não a nossa, particular, limitada, mas uma memória coletiva, ampla e talvez infinita. O mesmo João Cezimbra Jacques, falando sobre aqueles gaúchos de então, escreveu:
“Tal era pois o gaúcho dessas épocas primitivas, porém hoje, conquanto o sentido dessa palavra tenha ainda na verdade alguma coisa de comum com o seu significado de outrora, se estende ela não só aqui como nas repúblicas do Prata, a todo o habitante das campinas; do que resulta-lhe um sentido mais alto. Acontecendo, em geral, como já vimos, que esses camponeses são naturalmente dotados de muitos nobres sentimentos, de certa agilidade e robustez física, segue-se que o ser-se bom cavaleiro, sabendo manejar a cavalo, laço e as “bolas”, a lança e a espada, e não recuar-se antes os perigos; encarar os trabalhos e revezes da sorte com indiferença, prezar-se a palavra uma vez dada; dizer-se, seja para quem for, o que se sente com franqueza; ser bom e sincero amigo; amar a democracia, a liberdade, a ordem e o progresso; saber portar-se com desembaraço e decência num salão entre senhoras e cavalheiros; ser obsequioso, servidor do próximo e amigo de proteger o fraco das garras do forte; ser enfim um homem, como se costuma dizer, para o que se ofereça, eis o verdadeiro gaúcho. De sorte que esta palavra hoje é tomada como sinônimo de cavalheiro; portanto dizer-se que um homem dos pampas é um verdadeiro gaúcho, importa dizer que é um perfeito cavalheiro”.
Tal é a memória. Essa pequena citação – com mais de cento e vinte anos – traduz, de forma brilhante, o sentimento de um povo. É verdade que os tempos mudaram e que as exigências hoje são outras. O mundo globalizado nos cerca. Evoluímos. A pilcha, antes estritamente funcional, agora veste nossos sonhos. Aquela antiga e viva chama hoje ilumina o nosso orgulho. Não um orgulho no sentido de vaidades. Mas um orgulho atávico, patriótico, gaúcho.
E quando começarmos a escrever alguma coisa sobre gaúchos, nas primeiras linhas, deveremos dizer que “um homem dos pampas é um verdadeiro gaúcho, importa dizer que é um perfeito cavalheiro”.