“Arruma flor, minha mochila inteira, tô de partida nessa quarta-feira… Já não há mais como poder ficar!… Quando chegou-m o eco da mensagem meu coração já estava de viagem, Rumo à fronteira, louco pra chegar!!!”

(Fragmento de “PARTIDA“, Chamamé de Mauro Ferreira – vendedora do Festival da Barranca de 1985, onde o tema foi “BARRANCA“)

E se encerrou na madrugada do domingo de páscoa mais um FESTIVAL DA BARRANCA, o famoso Festival da Barranca, assim espontânea e despretensiosamente batizado, já em sua primeira edição, que hoje é o mais antigo festival nativista que temos, ainda em atividade no Rio Grande do Sul (já que a Califórnia deixou de acontecer a alguns anos, infelizmente). Porém a Barranca ganhou particularidades originais, diferenciadas de todos os outros festivais que se tinha no Estado, á época, não só musicais e estruturais, mas também humanas e inventivas. Ele acontece em um pesqueiro, numa reunião de amigos, sempre na Semana Santa, de todos os anos, “a campo fora”, nas barrancas do nosso velho Rio Uruguai, na sede do Albarusca. Por algumas vezes chegou a acontecer na beira de algum outro Rio, porém também em São Borja. Sua busca é, praticamente, por uma convivência melhor entre os humanos e intelectuais, sem preconceitos de rótulos, heranças, histórias, crédulos, linhas, militância, qualidades, etc. O evento é quase que uma prática a uma busca interior, para sermos pessoas melhores, em todas as áreas que atuamos. Se mesclam, desde a quarta-feira Santa (às vezes antes) até o domingo de Páscoa, momentos de euforias e calmarias, de musicalidade e apreciação, de quietude e comoções, de mates e de assados, de canha e de charla, de aprendizado e de ensino, de admiração e intelectualidade, e tantos e tantos mais sentimentos que possamos ter em se conviver com tantos amigos ou conhecidos, conhecidos, estes, que abraçam a todos, como se fossem amigos íntimos de anos.

Passa-se três dias declamando, apresentando, tocando e cantando temas para os amigos, confraternizando e, um culto à nossa música é nosso lugar (cada um com seus lugares e vertentes, todos respeitosamente). E o evento cultiva em uma noite de apresentação de temas inéditos, nascidos e criados na beira do pesqueiro, em menos de 24 horas. Na sexta-feira santa um tema escolhido é apresentado aos barranqueiros, e quem quiser (ou conseguir) compor até as 17h de sábado, estará em palco. A fórmula é original e inventiva, mexendo, inclusive, com a capacidade de cada um em buscar novas práticas e caminhos para suas composições. Na Barranca os homens são puros, honestos e iguais! Todos voltam dela pessoas melhores, quase que rebatíamos, pelas águas “vermelhas” do Rio Uruguai. E o resultado disso tudo é impressionante. Quantas e quantas músicas famosas nasceram em menos de 20 horas, apenas!?

A melhor definição sobre a Barranca vem de Sergio Jacaré, que disse que a Barranca era “um comício de espíritos”, não comício no sentido de convencimento, mas no de mostrar o que cada alma sensível e artística tem de melhor aos amigos e colegas. Já a história da Barranca, nada melhor que seu fundador, Aparício Silva Rillo para nos contar, como em um texto seu de 1985:

“Nada acontece por acaso, segundo a teoria dos racionalistas (estes caras que são alimentados a ração balanceada). Talvez tenham lá suas razões, os cujos. Menos no que se refere ao festival da Barranca. Este nasceu por acaso como os nenês de novembro, frutos da semeadura suada do Carnaval. Pois sucede que o pessoal de Os Angüeras e mais alguns de achego, desde pelo menos 1965, realizavam duas grandes pescarias no ano: uma na Semana Santa, outra em setembro.

A primeira para o tradicional jejum de carne (mulheres não nos acompanhavam e até hoje não). A outra na Semana da Pátria, para escapar (desculpa…) dos chatíssimos desfiles que são a tônica da efeméride cívica. Para uma e outra pescaria vinham de Porto Alegre o Antonio Augusto Fagundes (Nico) e o Carlinhos Castilhos (Passaronga), com o Juarez Bittencourt (Xuxu) algumas vezes e, quando em quando, com outras caras mais ou menos simpáticas. E aí aconteceu. Por acaso, repito, contrariando os racionalistas. A gente estava no “Pesqueiro da Bomba”, no Rio Uruguai, na Semana Santa de 1972.

Havia tomado umas que outras, alguém falou na Califórnia da Canção acontecida em primeira edição no dezembro anterior, em Uruguaiana, quando uma voz (acho que do Passaronga, outros acham que outro, há quem jure que de um espírito) sugeriu: – E se a gente fizesse o nosso festival? Aqui mesmo, no improviso, na barranca do rio? Então, naquela Semana Santa, noite de quinta-feira, ficou assentado em cepo de três pernas que se faria o festival. O Tio Manduca (disso sim, me lembro) propôs que as composições tivessem por base, tema único, nomeou-se o presidente da “Comissão” e lascou o tema: “Acampamento de Pescaria”. E aditou, enquanto me filava o trigésimo oitavo cigarro daquele dia: – Sábado de noite os artistas se apresentam. Vocês têm o dia todo de amanhã para trabalhar o tema. Tá resolvido. Houve três concorrentes neste primeiro Festival da Barranca, que, naquela época e porque estava em seu início, não merecia as maiúsculas que lhe dou. Carlinhos Castilhos, só e mal acompanhado; Nico Fagundes com “Fuça” no violão e, em dupla Zé Bicca e esta voz que vos fala. Apresentadas as composições, por ordem de sorteio, cantou o Carlinhos (palmas, palmas e palmas), cantou o Bicca (idem, idem e idem) e finalmente o Nico (ibidem, ibidem e ibidem).

A platéia, meio sobre a empolgação, assentava-se em semicírculo. Todos (eu disse todos) votaram. Menos os concorrentes, claro. Ganhou o Nico, com “Eu e o Rio” – hoje gravada, como tantas composições que nasceram na Barranca para ganhar alguns dos mais importantes festivais nativistas do Estado. O detalhe, nisso tudo, é que a composição vencedora (linda, a melhor da noite), nada tinha a ver com o tema proposto. Cantava a relação espiritual de um amante descornado com as águas do Rio Uruguai. Mas o fato é que ganhou. O que prova, desde a idade da pedra dos festivais nativistas, que júri deste tipo de evento não é flor de cheirar com pouca venta.

A confraternização foi geral, o vencedor queria por que queria o prêmio (mas que prêmio caracos?). O Milton Souza ganiçava de raiva por que lhe haviam estragado a gravação (para a rádio São Miguel, ouviram?) por intervenção de calão não recomendável, eu achei que estava uma beleza, nada como o autêntico e o espontâneo para valorizar uma reportagem. Aí o Milton me olhou de esquadro e eu saí pelo arrabalde. Pensando que Deus me desse saúde, engenho e arte, um dia eu ia escrever esse episódio. O que faço, vinte anos mais velho, mas feliz. Porque o Festival da Barranca, nesse tempo, depois de catorze edições, faz por merecer as maiúsculas que agora lhe confiro!”

barranca de sao borja

Na Barranca figuras lendárias da nossa arte já se encontraram (e ainda se encontram,ano a ano), unindo Os Angüeras, Telmo de Lima Freiras, Pedro Ortaça, Cenair Maica, Eron Vaz Mattos, Olívio Dutra, Mano Lima, Farelo Lima, o Lagarto, a família Pons, Chico Bastos, Yamandu Costa, Lucio Yanel, Família Guedes, Alejandro Brittes, Tarrago Ros, Leo Almeida, Caio Martinez, Penezzi, Tukio Urach, Jorge Freitas, o Loguercio, o Pertonico, Xiruzinho, Diogo Madruga, Tau Golin, Nelson Londero, Manolo, e tantos mais, que não se consegue nunca citar todos. E muitos também foram os vencedores, nessas 48 edições que aconteceram, sendo realizadas desde 1972 até agora. Os prêmio na verdade são secundários.

CTG S.A.Powered by Rock Convert

Cada um mostra é a sua arte. E entre os nomes, dos autores mais inventivos, estão: Nico Fagundes, Carlos Castilhos, Aparício Silva Rillo, Pedro Bicca, Miguel Bicca, Elton Saldanha, Sérgio Jacaré, Mauro Ferreira, Luiz Carlos Borges, Guido Moraes, Tadeu Martins, Rodrigo Bauer, Vinícius Brum, Chico Saratt, Mário Barbará, Bagre Fagundes, Erlon Pericles, Pirisca Grecco, Vaine Darde, Rui Biriva, Duca Duarte, Silvio Genro, António Augusto Ferreira, Tiago Cesarino, Cabo Deco, Atanásio Borges Pinto, Carlos Omar Villela Gomes, e tantos e tantos e tantos mais.

Dos fundadores da Barranca vivos, só está o Carlinhos Castilhos, o famoso Passaronga, compositor, músico, ator, ginete e chuliador, um gaucho tão consagrado (um dos “Cantores dos Sete Povos”, vencedor do Festival em 1976).

E é assim que, neste ano de 2019, mais uma grande Barranca se encerra, cheia de paz, de luz, de novos planos, de novos quilos a mais, novas parcerias, novas musicas e novos campeões simbólicos de toda essa magnitude de convívio. Abaixo seguem então os vencedores, onde o tema apresentado não podia ser nada mais nada menos que “o abraço”, um dos símbolos máximos do Festival:

*PRIMEIRO LUGAR: NUM ABRAÇO DE CORDEONA (Vaneira missioneira) Letra: Diego Müller Melodia: Desidério Souza e João Malheiros Interprete: Desidério Souza e João Malheiros (Com Desidério Souza na cordeira de oito-baixos, João Malheiros no violão base, Nêgo Dorival no violão solo e Farelo Lima na percussão) *SEGUNDO LUGAR: JUNTOS (Milonga) Letra: Ciro Ferreira e Lucas Ferreira Melodia: Ciro Ferreira e Lucas Ferreira Interprete: Ciro Ferreira e Lucas Ferreira (Com Ciro Ferreira no violão base e solo e Lucas Ferreira no violão solo e base) *TERCEIRO LUGAR: O SORRISO DO ABRAÇO (Chamamé) Letra: Sílvio Genro e Dilson Weber Melodia: Flávio Sarturi Intérprete: Alencar Di Caprio (Com “A Turma da Celva”, Marcos Robalo na cordeona piano, Flávio Saldanha no violão base, Guilherme Castilhos no violão solo, Marinho Pinto na percussão e Silvio Genro no vocal) *TROFÉU QUÁ-QUÁ – PRIMEIRO LUGAR: QUEM CAGÔ (Reggae) Letra: Gustavo Brodinho Melodia: Gustavo Brodinho Interprete: Gustavo Brodinho (Com “Turma do Ônibus de Porto Alegre”) *TROFÉU QUÁ-QUÁ – SEGUNDO LUGAR: MAÇAMBARÁ (Samba) Letra: Pirisca Grecco Melodia: Pirisca Grecco Interprete: Pirisca Grecco (Com “Turma do Ônibus de Porto Alegre”) *MELHOR POEMA: NO LEITO DA COMUNHÃO (Chamamé) Letra: Alex Nicola Portela, Alexandre Espiga Bernardes, Francisco Walter e Ângelo Franco Melodia: Ângelo Franco Interprete: Ângelo Franco *CIGARRA DO ACAMPAMENTO: SÉRGIO ROJAS *COMENDADOR DA BORRACHEIRA: FELIPE TÓTTI

*OBS.: O “quá-quá” é uma modalidade criada para a apresentação de musicas com caráter engraçado, contanto, geralmente, dos temas pitorescos que aconteceram no evento. Podendo ou não ter o tema anual em sua composição. Geralmente a escolha desse prémio se dá pelo público de barranqueiros presentes. Já a “cigarra” é um prémio aquele que mais tempo canta ou anima as rodas de cantorias que se estendem por todo o pesqueiro. E, por fim, o “comendador da borracheira” é pra aquele, realmente, o mais borracho do evento.

Festival Barranca

“E na beira do Uruguai velho minha alma não se estanca… Verte e se transforma em Angüera, e aí no meio de abanca!… Conta causo… Dá risada… Bebe trago… E ás vez” canta… E pede um ronco de oito-baixos que é pra abraçar a Barranca!!!”

(Fragmento de “NUM ABRAÇO DE CORDEONA“, uma Vaneira Missioneira de Diego Müller, Desidério Souza e João Malheiros – Vencedora da Barranca de 2019, onde o tema foi “O ABRAÇO“)

Na plenitude da felicidade cada dia vale uma vida inteira!”.

E é assim o Festival da Barranca, lotando nossas malas de garupa de saudades e lembranças boas, dos momentos tantos onde se canta, onde se brinca, onde se toca, se declama, onde se conta um causo, se conta a história do nosso Rio Grande do Sul, onde se toma o mate, se come peixe, se joga um truco, onde se confraterniza… encontro este que todos já estão esperando para 2020, numa oportunidade única e anual de construção de si mesmo, voltando e espalhando esse sentimento de sonho e de paz a todos, através da arte e de suas manifestações mais representativas, nos empurrando para um futuro, que a gente não sabe qual é, mas que terá esse lume barranqueiro!

Viva o Rillo… Viva Tio Manduca… Viva São Borja…

Viva o Uruguai… Viva a BARRACA… e, principalmente, viva A NOSSA ARTE!

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui