O Gaúcho, na exata origem da palavra, como sabido, não existe mais, já que os pesquisadores o conceituam como aquele homem do campo, dono de inúmeras habilidades, sem pouso certo e sem fronteiras, características que não se coadunam com as deste século, notadamente com a cultura ocidental.

Entretanto, inúmeros foram os caracteres dele deixados como legado durante as gerações, caracteres estes que foram influenciados por várias etnias e cujo somatório de culturas foi moldando o gaúcho atual.

Após uma época ditatorial vivida pelo País, com o sufocamento das tradições culturais locais e o início de um movimento globalizado com o final da 2ª Grande Guerra Mundial (1939-1945), é que iniciaram algumas ações fundamentais para a criação do Movimento Tradicionalista Gaúcho, como, por exemplo, a instalação de um Departamento de Tradições Gaúchas no Colégio Júlio de Castilhos, na cidade de Porto Alegre/RS, em 1947.

O Movimento Tradicionalista Gaúcho da forma como o conhecemos, como associação das entidades tradicionalistas organizadas, teve seu nome criado durante o 12º Congresso Tradicionalista realizado na cidade de Tramandaí, no ano de 1966, sendo que, conforme afirmado por Manoelito Carlos Savaris, o MTG olha para o passado com a finalidade de entendê-lo e trazer para a atualidade as boas práticas dos antepassados.

É com base nesse olhar para o passado, nesse olhar de como era a sociedade gaúcha nos tempos de antanho, que os historiadores descreveram, por exemplo, que o Tatu foi dançado em determinada época, que dançava-se Chula, que declamava-se, que eram feitas provas de rédeas, de laço e, desta forma também é que foram criados os regulamentos artísticos e campeiros.

Claro que tudo foi fruto de muitas pesquisas, mas, entre diversas etnias formadoras do povo gaúcho, como os índios, espanhóis, portugueses, alemães, italianos, entre outras, todas com suas importantes contribuições nas provas artísticas e campeiras regulamentadas hoje pelo MTG, questiona-se: qual foi a contribuição da cultura negra para o Movimento Tradicionalista Gaúcho?

É exatamente esta questão que se pretende seja respondida ao final da presente pesquisa histórica, a qual, é bom ressaltar, não possui a pretensão de esgotar o tema.

CONTEXTUALIZAÇÃO:

O Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul, em seu blog, aponta que o Rio Grande do Sul foi uma das províncias que recebeu o menor número de escravos, os quais teriam chegado com os tropeiros e sesmeiros e mais tarde com os colonizadores portugueses em 1737, porém não teriam se adaptado ao clima e nem ao trabalho da criação do gado.

A respeito da chegada dos negros no sul do País, Izabel Trindade, também em seu blog, comenta que há indícios sobre eles já na Colônia de Sacramento em 1680, para tanto diz que alguns historiadores afirmam que o contingente na fundação da referida colônia “era composto de duzentos homens, sendo sessenta escravos negros, e, destes, quarenta e oito eram propriedade de Manuel Lobo, comandante da referida expedição”.

Gabriel Santos Berute, em sua dissertação de Mestrado no curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, afirmou que a maioria dos escravos que chegavam ao Brasil desembarcava na Corte, mais especificamente no porto do Rio de Janeiro e depois eram levados ao porto de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Gabriel aponta, ainda, um aumento de 112% da quantidade de escravos enviados ao Porto de Rio Grande no período da expansão econômica do Rio Grande do Sul, que justamente foi o período das charqueadas.

Regina Célia Lima Xavier, pós Doutora em História pela New York University, em um de seus artigos comenta que as grandes fortunas no Rio Grande do Sul e no Paraná (ela nomina as regiões de Guarapuava e Paranaguá) estão relacionadas diretamente com a presença da escravidão. Ainda sobre o Paraná, é importante mencionar a conclusão a que o historiador Luis Augusto Ebling Farinatti chegou que é a de que na região de Castro, 32% das propriedades que combinavam agricultura e pecuária tinham escravos.

Verifica-se a relevância, na época, da mão de obra escrava para o sucesso das atividades realizadas no campo, mas conforme concluiu Graciela Bonassa Garcia em sua tese de Doutorado, os escravos não eram utilizados apenas na pecuária, trabalhando em outras atividades também.

Vê-se que os escravos, ainda que em menor quantidade que nas demais províncias, estiveram presentes entre os habitantes do Rio Grande do Sul, tendo sido fundamentais para o sucesso das charqueadas, mas também tendo sido fundamentais para defender os ideais de seus senhores em várias lutas, dentre elas podendo ser destacada a Guerra dos Farrapos (1835 a 1845).

Olgário Paulo Vogt mencionou que “em 20 de setembro de 1835, quando iniciou a guerra civil com a tomada da capital, noticiou-se a presença de mais de 50 escravos entre os farrapos”. Ele explica que essa adesão dos escravos se deu em razão da promessa de liberdade, liberdade esta que fez, inclusive, com que muitos negros fugissem de seus senhores para lutar. Vinicius Pereira de Oliveira e Cristian Jobi Salaini falam que os escravos chegaram a representar metade do exército rio-grandense.

Os escravos integrados ao exército passaram a ser conhecidos como “Lanceiros Negros”, ocupando duas divisões, uma de cavalaria e outra de infantaria, tendo participado de quase todas as batalhas durante os anos da Revolução Farroupilha, até serem praticamente dizimados na Batalha dos Porongos, episódio obscuro na história da Guerra dos Farrapos.

Dóris Bittencourt Almeida e Josiane Braga Rodrigues, sobre o episódio da Batalha dos Porongos falam o seguinte:

“Envolver os negros na Guerra dos Farrapos foi uma maneira oportunista dos estancieiros da região terem combatentes, mesmo que as suas motivações fossem a liberdade. Porém, não seria vantajoso que esses homens fossem livres e os estancieiros ficassem sem mão de obra barata, assim, na Batalha dos Porongos houve uma emboscada contra os lanceiros, algumas pessoas acreditam que foi iniciada pelos próprios comandantes deles. O massacre matou muitos lanceiros, ocorrendo o fato dias antes do final da guerra no estado.”

Há quem diga que foi criada uma versão de traição na Batalha dos Porongos com a finalidade de macular a imagem do General Davi Canabarro, prejudicando uma nova reunião de tropas e a conseqüente retomada da revolução, porém é fato que existem duas correntes doutrinárias e que o episódio continua obscuro, principalmente por conta de os Lanceiros Negros terem sido encontrados desarmados.

Enfim, os negros, assim como as outras etnias, tiveram papel de alta relevância na formação do povo gaúcho e embora seja possível encontrar a influência desse povo nos Estados do Rio Grande do Sul e do Paraná, por meio da culinária, da música, da dança, não foi possível encontrar nas atividades regulamentadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho uma que seja oriunda da cultura negra.

Encontrou-se, é verdade, uma música para a dança dos facões, que poderia ter origem africana. Basta ver a letra para se chegar a essa impressão:

“Moçambique e Congadas, vindo do solo africano, mescla de sangue pampeano com raças desencontradas, maculelês, batucadas, ritmo negro e ilhéu. Debaixo do mesmo céu curtiram os mesmos clarões, reacenderam-se os tições, brilho de fogo no azul, vibra o Rio Grande do Sul com a dança dos facões.”

Porém, nada de concreto, como sendo de origem africana, foi encontrado no Movimento Tradicionalista Gaucho, notadamente nas atividades regulamentadas pela entidade. Analisando-se o regulamento artístico do MTG/PR, por exemplo, verifica-se que há a previsão das seguintes modalidades: a) Danças Tradicionais, Birivas e de Salão; b) Chula; c) Música; d) Causo e Declamação. Todavia, ao se analisar as modalidades regulamentadas, não se encontra uma que tenha sido herdada da cultura negra. O mesmo pode ser dito das modalidades campeiras.

Talvez, ao desenvolver da pesquisa esta situação se altere, mas por hora não é possível afirmar que a cultura negra teve grandes influências sobre o MTG.

CONCLUSÃO

Diante das informações e dados coletados, considerando-se, ainda, a alta carga preconceituosa que a sociedade até os dias atuais traz com tudo o que é negro, a qual na época do resgate das tradições gauchas devia ser muito mais forte, conclui-se, por hora, que é bem provável que a cultura negra tenha sido tomada como subcultura e não tenha sido levada em consideração no momento de definição das atividades regulamentadas pelo MTG.

Ressalta-se, entretanto, a fragilidade desta pesquisa, já que poucos escritos foram lidos e em um curto espaço de tempo, o que certamente não traz um caráter de cientificidade a nenhuma conclusão ou afirmação aqui feita.

SOBRE O AUTOR:

Éverton Mello, nascido em Cruz Alta/RS, mas reside em Ponta Grossa/PR desde 2005. Graduado e pós-graduado em Direito, trabalha no Ministério Público do Estado do Paraná e atualmente é o 2° Peão Adulto do MTG-PR.

Bibliografia:

ALMEIDA. Dóris Bittencourt; RODRIGUES. Josiane Braga. Cultura Negra: A abordagem da história do negro na cidade de Porto Alegre. Revista Latino-Americana de Historia. Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial. Disponível em: http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewArticle/199. Acessado em 16/09/16.

BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790-c.1825. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/10917. Acessado em 16/09/2016

FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Nos rodeios, nas roças e em tudo o mais: trabalhadores escravos na Campanha Rio-grandense, (1831-1870). Anais eletrônicos do II Encontro escravidão e liberdade no Brasil meridional. 2005. I CD ROM. Disponível em: http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=63&Itemid=63. Acessado em 16/09/2016.

GARCIA, Graciela Bonassa. O Domínio da Terra: Conflitos e Estrutura Agrária na Campanha Rio-Grandense Oitocentista. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/11393/000613729.pdf?sequence=1. Acessado em 16/09/2016.

VOGT. Olgário Paulo. O Liberalismo Farroupilha e Escravidão na República Rio-Grandense. Universidade de Santa Cruz. REDES – Revista do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz. V. 19, ed. especial, p. 153-168, 2014. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/redes/article/viewFile/5159/3566. Acessado em 16/09/2016.

XAVIER, R. C. L. A escravidão no Brasil Meridional e os desafios historiográficos. In: Gilberto Ferreira da Silva;José Antônio dos Santos;Luiz Carlos da Cunha Carneiro. (Org.). RS Negro: cartografia sobre a produçã do conhecimento. Porto Alegre, 2008, v. , p. 15-31. Disponível em: http://docplayer.com.br/7089445-Pucrs-pontificia-universidade-catolica-do-rio-grande-do-sul.html. Acessado em 16/09/2016.

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